Teste de Derrite: PM levará foragido à prisão sem audiência de custódia
Comunicado interno da PM fala sobre implementação de projeto-piloto que pode agravar crise institucional entre as polícias Civil e Militar
atualizado
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Policiais militares do Comando de Policiamento de Área Metropolitana 1 (A/M-1), atuante no centro da capital paulista, iniciam um projeto-piloto, nesta quarta-feira (4/6), que permitirá, entre outras coisas, que eles prendam procurados da Justiça sem submetê-los a audiência de custódia e sem levá-los à Polícia Civil para a formalização da captura.
A iniciativa, que irá vigorar nos próximos 15 dias, foi confirmada com exclusividade ao Metrópoles pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), cujo titular é o PM da reserva Guilherme Derrite. O propósito da mudança, informou a pasta, é “combater a reincidência criminal”, tendo a participação de “todas as forças policiais do Estado”: polícias Civil, Militar, Técnico-Científica e Penal.
Após a publicação desta reportagem, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) enviou nota ao Metrópoles dizendo que “em até 24 horas, o preso ará por audiência de custódia, garantindo o pleno cumprimento da legislação”. Segundo a pasta, o transporte do preso até o fórum, onde ocorre a audiência, será feito agora pela Secretaria da istração Penitenciária (SAP). A reportagem aguarda um posicionamento da SAP.
Na prática, o projeto vai dar poder para que policiais militares prendam pessoas investigadas e condenadas por crimes, com pedidos de prisão em aberto, e elaborar um boletim de ocorrência da própria corporação para balizar futuros trâmites jurídicos.
A iniciativa, que circulou de forma velada nos bastidores da PM paulista, é mais uma medida que agrava uma antiga crise institucional entre as polícias Civil e Militar em São Paulo, como afirmado à reportagem por membros das duas instituições em condição de sigilo.
Há um ano, o Metrópoles divulgou, em primeira mão, o conjunto de ações de empoderamento da PM promovido pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos). As medidas anunciadas na época, previstas em uma ordem preparatória, permitiam que militares exercessem atividades de investigação e produzissem o chamado termo circunstanciado da PM, o que provocou forte e imediata reação da Polícia Civil.
A enorme repercussão da iniciativa fez com que o governo recuasse da mudança e anunciasse, em abril do ano ado, a criação de um grupo de trabalho, como forma de apaziguar a crise entre as polícias. Os trabalhos foram prorrogados até que, em setembro, foram concluídos, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP). Os resultados, contudo, nunca foram divulgados.
Comando de Policiamento de Área Metropolitana
De acordo com o comunicado interno, ao qual o Metrópoles teve o, o projeto no A/M-1 também prevê a requisição, feita por PMs, de exame de corpo de delito, outra atribuição da Polícia Civil, como prevê o Código de Processo Penal.
Ao encaminhar capturados diretamente para unidades prisionais, segundo membros do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) ouvidos pela reportagem, os PMs estariam incorrendo no descumprimento de resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina a realização de audiência de custódia, incluindo de presos recapturados.
Encaminhamento para presídios
O comunicado interno da PM estabelece que, após constatarem a existência de um pedido de prisão contra um criminoso, os policiais militares deverão verificar, junto à sala de operação do A/M-1, “a validade do respectivo mandado de prisão”.
“Em sendo confirmada a vigência do mandado de prisão, elaborar BOPM (boletim de ocorrência da PM) e conduzir o infrator capturado ao IML (Instituto Médico Legal) central para a realização do exame de corpo de delito”, diz trecho do documento.
Após o capturado ser encaminhado ao exame — protocolo realizado pela Polícia Civil, após foragidos presos serem apresentados nas delegacias —, os PMs devem levá-lo diretamente para o presídio, sem o registro da captura em delegacias, conforme o comunicado.
Criminosos do sexo masculino, segundo o documento, deverão ser encaminhados ao Centro de Detenção Provisória 4 de Pinheiros, na zona oeste paulistana, e as mulheres para a Penitenciária Feminina da Capital, na zona norte. Já os capturados em prisões civis (por pensão alimentícia, por exemplo), para o Complexo Penal 2 de Guarulhos, na Grande São Paulo.
Audiências de custódia
Sem mencionar em nenhum momento a formalização da capturas nas delegacias, o projeto-piloto prevê que PMs irão informar o número dos BOs feitos por eles para policiais penais no momento da apresentação dos presos nas cadeias. O documento também não menciona o encaminhamento dos capturados para audiências de custódia.
“Preso recapturado tem que ir para audiência de custódia, mas eles [PMs] já vão incluir diretamente no sistema prisional. Quem vai resolver isso não é mais o delegado de polícia, é o comandante geral que chegou anteontem e mudou o Código de Processo Penal, a resolução do CNJ e mudou também, pelo que parece, as regras dentro da Delegacia Geral”, afirmou um juiz ao Metrópoles, nessa terça-feira (3/6), referindo-se ao coronel José Augusto Coutinho.
O magistrado acrescentou, em condição de sigilo, que o trabalho para prender foragidos é da Divisão de Capturas da Polícia Civil.
“Quem vai fazer policiamento ostensivo preventivo enquanto a PM faz o que não é da sua atribuição?”, acrescentou.
O advogado criminalista Conrado Gontijo, professor de direito penal e processual penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e no Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), também criticou o projeto-piloto da PM.
“A ideia de que foragidos capturados sejam levados aos estabelecimentos prisionais sem ar por audiências de custódia é absurda, fere direitos fundamentais e determinações claras do CNJ. Porém, não causa surpresa, tendo em vista o histórico de arbitrariedades que tem marcado a atuação da PM no Estado de São Paulo nos últimos anos”, diz Gontijo.
Professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o professor Rafael Alcadipani endossou as críticas ao projeto.
“Me parece que existe o interesse da Secretaria de Segurança Pública de tirar atribuições da Polícia Civil, e isso é bastante sério”, disse. “A gente precisa manter o equilíbrio entre as forças de segurança, a gente não pode ter uma Secretaria de Segurança que incentiva uma disputa entre as instituições, que já é uma relação difícil”, completou Alcadipani.
“Percebe-se, como há muitos anos não víamos, uma Delegacia Geral [da Polícia Civil] pouco atuante na defesa da instituição”, disse o professor da FGV. A avaliação é compartilhada por policiais civis ouvidos pela reportagem, que se sentem desamparados pela cúpula da instituição.
O que diz a SSP
A SSP afirmou, em nota enviada ao Metrópoles, que a “iniciativa” resultou de “um processo técnico e colaborativo construído ao logo da atual gestão entre as instituições [policiais]”. Nos próximos 15 dias, acrescentou, a região central da capital paulista será usada como área para testar “um fluxo operacional inédito”.
Segundo a SSP, a iniciativa “automatiza o envio de informações sobre criminosos presos” além de permitir que procurados da Justiça, com mandado de prisão vigente, sejam encaminhados diretamente para a cadeia, “desde que não haja outras ocorrências associadas”.
O argumento para a implementação do projeto é o de que ele agilizará procedimentos, não especificados, e otimizará recursos e reforçará a integração entre as polícias, “permitindo o rápido retorno dos policiais militares ao patrulhamento e dos policiais civis às investigações”.
Presos em flagrante, ou em cumprimento de mandados de prisão temporária serão, segundo a SSP, encaminhados à Polícia Civil.
A pasta chefiada pelo PM da reserva Guilherme Derrite disse ainda que, ao término dos 15 dias de teste, irá avaliar os resultados por meio do Centro Integrado de Comando e Controle. Com isso, será analisada a “viabilidade operacional do modelo”, com a proposição de ajustes, ou ainda a ampliação dele.