Era grande a saudade do Brasil, esse país tão exilado de si mesmo
Parece estranho para quem vê de fora, mas é assim mesmo. Somos alegria e tristeza em intensidade altissonante, dependendo das circunstâncias
atualizado
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Estávamos todos com muita saudade do Brasil. Desde os milhares, talvez milhões, de foliões nas grandes cidades carnavalescas até as duas dezenas de estudantes brasileiros ilhados em Harvard, todos nós nem sabíamos que era tanta a saudade represada até que conseguimos tirar do peito esse estranho amor que nos imanta. E gritamos, pulamos, carnavalizamos nossa alma festiva. É desse jeitinho que somos, nós brasileiros.
Somos “de uma originalidade delirante”, como Carlos Drummond de Andrade escreveu ao amigo Mário de Andrade, no distante 28 de outubro de 1924. Tão delirante que fomos pra avenida, real ou imaginária, celebrar uma atriz e um filme brasileiros. Parece estranho para quem vê de fora, mas é assim mesmo, somos alegria e tristeza, em intensidade altissonante, dependendo das circunstâncias.
Era mesmo grande a saudade do Brasil. E o filme do Walter Salles atou as pontas soltas desse país tão exilado de si mesmo. Por algum tempo, voltamos a ser brasileiros, a existir em estado de excitação coletiva, num estádio de futebol utópico, torcendo por um filme que trata de um tema difícil num país que nem é muito ligado em produções audiovisuais brasileiras.
Todo o muito que já foi dito sobre o filme vai nos ajudando a entender o fenômeno Ainda Estou Aqui. As qualidades cinematográficas – sua delicada e trágica beleza –, a história extraordinária de Eunice Paiva, o risco recente que amos com as tentativas de golpe em 2022/2023, tudo vai se somando para explicar o retumbante sucesso do Oscar de Melhor Filme Internacional 2025.
Mas o filme não é apenas um filme e a atriz não é apenas uma atriz.
“Eu conheço a fama, mas é muito mais do que isso”, disse Fernanda Torres às vésperas do Carnaval. O diretor foi o primeiro a dizer que a alma do filme é a Fernanda. Mas não creio que seja apenas pelo contido desespero de sua impactante atuação. Ou pela força descomunal da personagens que ela interpreta. Mas pela atriz em si e de como ela existia, antes do filme, na alma brasileira. Aquela Eunice, tão contidamente trágica, é a Fátima, é a Vani, é a divertida, a periférica, a debochada, a escrachada, que, afinal, expressam o espírito brasileiro que povoa as grandes cidades. A tragédia e a glória de sermos quem somos.
A brasileiríssima filha de dona Fernanda condensa o que há de melhor em nós: certa ingenuidade maliciosa, muita autenticidade, bastante irreverência e uma inteligência safo, rápida, uma capacidade de se sair bem nas situações mais desconcertantes. Fernanda Torres não é uma personagem, ela é uma brasileira em estado latente de Brasil e de si mesma. Uma inteligência geneticamente brasileira, maravilhosamente brasileira; um jeito brasileiro de existir.
E ela vai dizendo por nós o que nós somos. E esse é um gesto libertador e fortalecedor em tempos tão incertos. Temos muito a dizer ao mundo, muito mais do que o futebol (que já não diz mais nada) e o carnaval. Já dissemos muito aos lá de fora e eles já ouviram e viram, na música e na arquitetura especialmente. A coisa andou desandando e não apenas no Brasil, mas aqui qualquer desandada nos faz perder o prumo dadas as nossas históricas fragilidades.
Por um instante, só mais um instante, matamos a saudade do Brasil.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.