O demolidor de instituições (por Gustavo Krause)
Além de demolidor de instituições, Trump é a afirmação perversa da proximidade pacífica e fraterna
atualizado
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A Constituição dos EUA é sempre mencionada como exemplo de estabilidade e funcionalidade da sociedade americana. Está longe de ser um estatuto que estabelece regras para a utopia da perfeição, ideal inalcançável pela natureza humana. Nela estão inscritos o sacrifício de autênticos patriotas, a força determinante da liberdade contra a opressão do poder e um debate público na imprensa originalmente publicados em Nova York (85 artigos/ensaios sob o título The Federalist), escritos por Alexander Hamilton, James Madison, John Jay, servindo como argumentos favoráveis ao constitucionalismo, às liberdades individuais e aos pesos e contrapesos no exercício do poder. Uma engenhosa construção nem por isso a salvo dos apetites vorazes dos ditadores
A caminho de completar dois séculos e meio de vigência (escrita em 1787, na Convenção da Filadélfia, sob fortes tensões dos conflitos federativos e a questão da escravatura; ratificada em 1788; vigente em 1789), a Lei Suprema dos Estados Unidos ultraou graves contextos históricos com um diploma legal com sete artigos (Organizavam os poderes); as dez primeiras emendas conhecidas como o Bill of Rights e a 27ª e última Emenda ratificada em 7 de maio de 1992.
Ao longo da experiência histórica, a virtude da concisão foi precisa na organização da política do estado nascente ao definir atribuições e limites dos Poderes, uma robusta proteção às liberdades individuais, e à igualdade dos cidadãos.
Para Alexis de Tocqueville, autor da irável obra A Democracia na América o que mais vivamente lhe atraiu a atenção foi a “igualdade de condições”: “Um Estado democrático, constituído dessa maneira, a sociedade não será imóvel; nele, porém, os movimentos do corpo social poderão ser regulados e progressivos, embora encontremos nesse Estado menos esplendor do que no seio da aristocracia, também encontraremos menos misérias; os prazeres dentro dele, serão menos extremos, e mais geral o bem-estar; as ciências menos perfeitas, mas a ignorância mais rara; os sentimentos menos enérgicos, porém mais suaves os hábitos; encontrar-se-ão dentro dela mais vícios e menos crimes” (Trecho da introdução escrito em 1835, P. 16, Ed. Itatiaia Ltda, 3ª Edição: BH, 1987).
Ao concluir a introdução (p. 21), deixa claro sua aversão ao o privilegiado da aristocracia europeia ao Poder, contrapondo um “mundo novo” em que “procurei ver não de maneira diferente, porém, mais longe que os partidos; e enquanto eles se ocupam com o amanhã eu preferi pensar no futuro”.
Caso o grande pensador e escritor francês empreendesse, hoje, uma viagem de estudos sobre democracia contemporânea, com foco na América, estaria profundamente chocado. O risco da “tirania da maioria” ou a depender da falsidade tecnológica, associada à mentira disseminada pelos delinquentes cibernéticos. A imagem humana se tornou uma manipulação digital.
É bem verdade que a percepção sociológica de Tocqueville confirma o papel fundamental quanto aos organismos intermediários e à descentralização de poder, revigorando a democracia. Porém, é pouco para as reiteradas ameaças à democracia liberal e, mais gravemente, à estabilidade global.
Isto se deve, Professor Tocqueville, ao que o senhor mais temia: o poder absoluto como um instrumento político capturado por uma autocracia plutocrática com força suficiente para erodir as instituições secularmente construídas. Está em curso pelo presidente Trump, o demolidor de instituições e candidato a Rei do Mundo. Encaminho ao seu conhecimento ações predadoras contra as instituições.
Na escalada predatória, acusou de fraudulenta a eleição em que foi derrotado, estimulando seus partidários a resolverem disputa eleitoral num “julgamento por combate”. Um grave atentado contra o Capitólio, símbolo da democracia representativa.
Nos cem primeiros dias de governo, atingiu frontalmente o alicerce das sociedades democráticas: a confiança; declarou guerra à ordem internacional arremessando todas as baterias de misseis tarifários criando o ambiente de sua preferência: o caos; agrediu os direitos das pessoas ao ordenar um impiedoso programa de deportação (e nesta senda malvado estende a mão ao ditador/torturador Bukele contra um cidadão indefeso Kilmar Garcia): de fato, pessoas não importam.
Está indo além do que prometeu na companha. Mais do que um delinquente político e penal assumiu a cruel tarefa de demolidor de instituições: não compreendeu verdadeira dimensão da grandeza americana que soma o poder econômico ao poder do conhecimento.
Na respeitável visão do renomado pensador e economista Eduardo Giannetti, Trump “está regredindo ao mercantilismo” ao referir seis consequências do tarifaço: redução do comércio internacional, desvio e reconfiguração dos fluxos de comércio, perda de eficiência das economias em razão do protecionismo, inflação, recessão, paralisia de investimentos e dúvida se os títulos do Tesouro americano são o porto seguro diante das crises internacionais e momentos de incerteza (Entrevista na edição da Folha de 19/04/2025).
Quanto ao poder da inteligência, a geração dos conhecimentos e o vigor das inovações tecnológicas, Trump estrangula Universidades dos EUA, os melhores centros excelência do mundo. Resultam em perdas irreparáveis que matam por asfixia a razão crítica, a maior inimiga do poder despótico. Que o exemplo de rebeldia da Universidade de Harvard encoraje outras instituições no enfrentamento da jaula ideológica com que Trump busca imobilizar a liberdade acadêmica.
Por fim, existem ativos intangíveis que convivem harmonicamente numa sociedade democrática como a coesão social, a cooperação solidária, o respeito aos diferentes e o compartilhamento de sentimentos (definidos por um conceito de uso corrente: empatia). Somente a liberdade, protegida e exercida amplamente, conduz ao humanismo. Com virtudes e pecados, os EUA chegaram a uma posição de liderança mundial na guerra, na paz, mas também na ajuda humanitária.
Além de demolidor de instituições, Trump é a afirmação perversa da proximidade pacífica e fraterna. Do jeito que vai, o provérbio prevalecerá “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Minha crença, no entanto, é que a singular virtude democrática marca o tempo para a alternância pacífica dos governantes. As instituições, bem estruturadas e bem defendidas, resistem e superam seus algozes.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda