Dinheiro, religião e política (mais Trump) (por Armando Nobre Mendes)
Seguir o dinheiro é um conselho frequente oferecido a quem busca entender os mecanismos terrenos do poder (e do crime)
atualizado
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Seguir o dinheiro é um conselho frequente oferecido a quem busca entender os mecanismos terrenos do poder (e do crime). Mas pode ser útil igualmente a quem tenta decifrar a dança dos mais de duzentos cardeais da Igreja Católica reunidos em Roma nestes dias para escolher o sucessor do Papa Francisco no conclave que começa nesta quarta-feira.
[o número leva em conta os cardeais eleitores — 133 até a última contagem –, e também aqueles que aram dos 80 anos e não poderão votar, mas participam das congregações gerais, os encontros em que se discute o estado do mundo e as qualidades de que o futuro Papa precisará para bem pilotar a barca da Igreja] A dança é a etapa inicial de intensas negociações políticas que culminam agora nas rodadas de voto na Capela Sistina — o conclave, a portas trancadas como diz o nome. Desse confinamento vermelho e dourado, os cardeais só serão liberados depois de escolher o novo papa.
Já nossa dança política desenrolou-se nos nove dias de intervalo entre o sepultamento do papa falecido e o começo formal do conclave, visto há pouco. Os palcos foram salões, casas apostólicas e missões no território do Vaticano, bem como hotéis, restaurantes e residências da cidade de Roma (o jornalista britânico William Cash informou no Sunday Times que um restaurante favorito neste conclave é o Camponeschi, na Piazza Farnese — linguini com ovas de tainha a 32 euros o prato).
Mas o prato principal é outro, religioso e político. Cash reportou também um grande convescote de filantropos católicos milionários vindos dos Estados Unidos, que ele teve a chance de acompanhar na semana ada, num hotel igualmente chique de Roma.
Quem oferecia os drinques era uma organização exclusiva e influente chamada Papal Foundation, cujo chairman é o cardeal Timothy Dolan — conservador e carismático, nova-iorquino e aparente candidato preferido de Donald Trump ao papado (quer dizer, se o presidente dos EUA não conseguir ganhar ele mesmo o trono de São Pedro, como sugeriu ao postar nas redes sociais uma imagem sua em trajes papais, manipulada por IA, é claro).
Cento e vinte milionários norte-americanos participaram do encontro da fundação, tendo o próprio cardeal Dolan como anfitrião. A Papal Foundation não é para qualquer católico. A taxa de inscriçao é de um milhão de dólares e dá direito ao título de Steward of St. Peter (o que pode ser traduzido como Custódio, Mordomo ou Servidor de São Pedro).
Eles se reúnem todo ano em Roma, depois da Páscoa, para um encontro de uma semana batizado de America Week. Trata-se de várias rodadas de eventos e atividades de levantamento de fundos para programas e atividades da Igreja Católica, aprovados pelo Vaticano — bolsas de estudos, financiamentos, fundos para a preservaçao das igrejas e do patrimônio artístico romano em mãos da Igreja. Segundo Cash, desde 1988 a organização doou mais de 250 milhões de dólares para causas do Vaticano, e faz planos para multiplicar os fundos arrecadados entre filantropos dos Estados Unidos. .
Este ano, o evento da fundação calhou de cair entre a morte do papa Francisco e o início do conclave, o que chamou a atenção para o imenso poderio econômico e o vasto potencial de uso político desse poder pelos católicos muito ricos e muito conservadores dos Estados Unidos.
Estima-se que entre 55% e 60% dos 60 milhões de católicos americanos votaram em Donald Trump na última eleição, cerca de 4 pontos percntuais a mais do que em 2020, quando o eleitorado católico dividiu-se por igual entre o republicano e Joe Biden. Na eleição de 2024, Trump escolheu como vice J.D. Vance, um católico ultra-conservador convertido já adulto (em 2019).
Para completar, Trump é outro presidente neste segundo mandato, ostentando sem constrangimento seu propósito de interferir e mandar não só nos Estados Unidos que o elegeram, mas em qualquer lugar ou instituição do mundo onde lhe der na telha. A pergunta é inevitável, então: de que maneira ele (e seus aliados na hierarquia católica dos Estados Unidos) poderiam tentar influenciar e interferir na eleição do próximo papa?
Cash, o jornalista, ressalva que ninguém espera uma interferência direta nas votações. Mas há muitas maneiras de tentar exercer alguma influência mais ou menos indireta. E o Vaticano tem problemas fiscais sérios — precisa de recursos para cobrir um deficit operacional que preocupava Francisco.
No convescote do hotel romano, o jornalista ouviu de um dos convidados uma frase sugestiva (e preocupante). “Poderíamos arrecadar um bilhão neste salão para ajudar a Igreja”, disse o filantropo (presume-se que de dólares, num evento de norte-americanos). “Desde que tivéssemos o papa certo” (o título da matéria no Sunday Times, a propósito, é Follow the Money – Siga o Dinheiro).